quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Direitos humanos, dever do Estado


Antonio

Valores pessoais e crenças são testados, definitivamente, em situações limites ou extraordinárias. Na normalidade, no cotidiano, é fácil (e confortável) se manter em premissas já estabelecidas, na segurança inconteste. Quando a situação muda, radicaliza, e somos confrontados com o diferente, aí vemos o quão resistentes são os nossos valores ou o quanto mudam de acordo com novos elementos.

Nesse possível trajeto de mudança, a tendência é a adaptação das crenças. Ficamos com uma parte que nos interessa e jogamos fora outra parte, adaptando e mutilando, convenientemente. Além disso, esses valores também estão sujeitos aos nossos preconceitos e interesses, a quem nós discriminamos e a quem nós apoiamos.

É nesta lógica que aparecem vozes, aqui, acolá e em todos os lugares, contrárias aos (chamados) direitos humanos.

Quase sempre com chavões automáticos, desprovidos de qualquer filtro intelectual, as vozes em uníssono clamam por sangue, pela vendetta. Essa turba é facilmente reconhecida e repetirá qualquer trocadilho sobre humanos direitos. Separa-se a população em dois grupos antagônicos, aqueles decentes (“eu, minha família e meus amigos”), que merece a proteção do Estado, normalmente na sua face policial (afinal, somos todos trabalhadores, bom pagadores de impostos), e os outros, os desconhecidos, desqualificadamente não-humanos, ou ”não-direitos”.

Essa categoria é fluída e amorfa. Pode caber nela um péssimo motorista que danificou seu carro, um trombadinha que roubou seu celular, uma mulher que aborta ou traficante do Complexo do Alemão. Aquele que, por qualquer motivo, seja visto como uma ameaça não é humano, não merece leis de proteção.

Sobre esse assunto, tão mal compreendido, uma breve explicação é necessária: a luta por aquilo que veio a se chamar de direitos humanos foi uma imensa batalha da sociedade contra o arbítrio estatal. Uma das suas primeiras manifestações modernas pode ter sido na Respublica Christiana e na idéia de igualdade de todos perante deus, e tem seu ápice na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, pela ONU.

Em suma, versam sobre os que seriam os direitos  fundamentais de cada um e de todos nós.  Estão incluídos o direito à nacionalidade, à propriedade e à liberdade. Mas também à integridade física, a um julgamento justo. Mas se somos os sujeitos desses direitos, quem seria o provedor deles? Esta é a pergunta-chave para que se entenda a questão: o poder público, o Estado.

Exatamente por esse motivo, por ser um ato de proteção do homem face ao gigante poder estatal, é que o outro chavão nauseante é completamente sem sentido: “não vi as pessoas, estas ONGs de direitos humanos fazerem nada quando meu parente foi assassinado por um bandido!”.

Não, senhor! Não viu e não verá nunca. O bandido cometeu um crime previsto no código penal, e ao Estado cabe processá-lo, julgá-lo, e prendê-lo, se for o caso, de acordo com as leis nacionais. Mas e quando é o próprio  Estado, por intermédio de seus agentes, que comete um crime, agindo às margens da lei, que, em vez proteger a vida, decide arbitrária e discricionariamente que aquela ali não pode ser chamada de vida, e assim mata, executa? O que fazer?

É justamente este um dos principais pontos, a defesa da legalidade contra o próprio Estado. Não foram poucas as pessoas que pediram a execução dos traficantes (todos?) que fugiram da Vila Cruzeiro para  o complexo de favelas do Alemão. Queriam que o policial ou o militar decidisse, acima de todas as leis, se aqueles mereciam ou não viver. Queriam que o Estado brasileiro jogasse fora todo o ordenamento jurídico.

As baixas, a morte de inocentes desconhecidos seriam entendidas como um passo necessário, diria até inevitável (não é assim que acontece no resto do mundo, mas vá lá). Queriam, pois aqueles lá no morro são os outros, e não um dos seus. Queriam, pois os outros não têm rosto. Queriam, afinal eles, os outros, não são direitos e não merecem ter direitos. Mas, quem decide, e com base em que?

Queremos, nós, de bem, ser tratados com respeito e dentro da normalidade, termos direitos. Mas para os outros não a lei, e sim a força bruta.

A encruzilhada retórica da claque está construída. Aceite a ação do Estado fora da lei e a decisão instantânea de quem é digno e quem não é, e um dia a espada do Leviatã cairá sobre você, que cometeu uma contravenção de trânsito ou não abaixou a cabeça na hora de falar com uma autoridade, ou que foi “confundido” com alguém perigosíssimo, que, segundo a opinião pública, merecia morrer.

Apoie essas ações e talvez seja última vez que poderá aplaudi-las. O que não se percebe nesse discurso é que a incapacidade de nos colocarmos no lugar do outro, nos posiciona acima de qualquer arbitrariedade por parte do Estado. Ledo engano. A defesa dos direitos humanos apenas para as tais “pessoas de bem”, o que quer que isso signifique, pode, desafortunadamente, nos colocar no grupo das “pessoas do mal”. Vai depender do poder discricionário, de quem, em um instante, julga e executa.

Fonte: Yahoo! Brasil - Colunistas » Direitos humanos, dever do Estado. Acesso em: 02/12/2010.

1 comentários:

Antonio disse...
7 de dezembro de 2010 às 16:26  

Fiz uma análise crítica desse texto com dicas para redação no site Vou Passar no Vestibular